segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O colar de minha tia

Passei a manhã arrumando gavetas. Assistindo programas sobre acumuladores compulsivos, descobri que sou uma anti acumuladora, quase compulsiva. Acho que pode-se dizer que sou obsessiva sim. Sempre senti fobia por ter muitas coisas. Muitas vezes fui motivo de chacota, porque as pessoas não acreditavam que eu não gostava de ter muitas roupas, bolsas e sapatos. Depois vieram os objetos e utensílios de casa, móveis e coisas que não estava usando. Quando descobri a filosofia feng shui meus problemas acabaram. Eu sempre descartei o que não estava usando, estava bem de acordo com aquela forma oriental de ver o mundo. Por algum tempo vivi sem preocupações com a compulsão por não acumular e sentir a necessidade de ver os espaços amplos e desocupados. Geladeira vazia pra se ver a luz dentro dela, gavetas com as coisas a vista, móveis desencostados da parede no mínimo 10 cm, tirar as embalagens de tudo que entrava em casa e já colocar para o lixeiro levar, pátio sem nenhum acúmulo que eu não pudesse ver as paredes limpas. Tudo parecia normal até que comecei a querer doar tudo que eu não pudesse limpar diariamente, tudo que eu não estivesse usando. Num círculo vicioso passei a me desinteressar por tudo que estivesse a minha volta. Inconscientemente passei a exercitar o sentimento de desapego das coisas, a reduzir sua importância pelo valor de uso e de troca. Não valendo nada a obsessão por me livrar delas aumenta exponencialmente a ponto de colocar no lixo limpo bem embalado se não encontro ninguém para doar. Decididamente, eu não quero ter mais nada. É uma doença? É um estado de espírito? É um processo de amadurecimento espiritual? Não tenho a mínima ideia, porque isto é um sentimento que me domina. 
É claro que não estou disposta a viver sem energia elétrica e água potável, muito menos sem o conforto de uma casa ou apartamento. Quero inclusive envelhecer numa pequena cobertura com vista para o mar e longe do barulho natural da juventude. Mas me bastará o básico que não ocupe muito espaço em 80 a 100 metros quadrados. Também caberá que o condomínio tenha piscina e jardim, que não serei eu a limpá-los.
Pois em toda esta limpeza rotineira me deparei com o colar que foi de minha tia materna. É uma peça de gosto duvidoso, confeccionada de jade trazida pelo marido dela quando foi à Itália pela primeira vez, há uns 50 anos. Ela detestou o tal colar porque alegava que fora comprado de última hora, pois não tinha um feche adequado ao material utilizado. Coisa que entendedores de joias como ele, que era dono de uma fábrica do ramo, deveria saber. Diante das discórdias do casal minha mãe se ofereceu para ficar com o colar. Exibindo-o como uma joia italiana passou a usá-lo com frequência. Lá pelas tantas minha mãe encheu-se do colar e o deu pra mim. Segui a tradição familiar e o usei bastante nos anos 80. Depois o deixei pelas gavetas pra ser avaliado se ficava ou se seria doado durante as fases de desapego. Hoje pela manhã, novamente admirei o colar e me passou pela cabeça enterrá-lo no jardim para ser encontrado por um arqueólogo do futuro. Ele não pertence mais ao presente, sua história, que envolve 3 mulheres e um maldito viajante que o trouxe para sua esposa, parece ter algum sentido. Olhar este colar me lembra de que ele é o colar de minha tia, não era de minha mãe e nunca foi meu. Ele é feito da terra, de jade, e é para lá que ele vai voltar. E eu seguirei meu caminho, minha filosofia de me desapegar. Adeus colar!

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Afinação

Como é difícil voltar a escrever depois de tanto tempo. Como é difícil ficar sem escrever tanto assim. Eu precisava de espaço, limpar minhas mágoas, lágrimas e pensamentos obsessivos. Tinha que me entregar um pouco e ficar ali, no meu canto, tentando entender o que acontecia comigo. Foram muitas noites e dias de recolhimento e reflexões doídas e doidas. Fui ao inferno e descobri que o céu não existe. Ele não existe quando estamos mal fadados ao abandono. Aprendi que se nos abandonam, devemos também nos abandonar e tentar encontrar a razão de todo o cenário. De longe de nós mesmos olhar nossos erros e acertos e compreender porque buscamos fazer junto o que podemos fazer separados do mundo. Somos seres que passam por aqui rodando sua própria roda da vida e se encontramos outras rodas é só de passagem, elas têm o próprio caminho a trilhar. Agora, enfim, estou trilhando o meu, sempre estive, mas agora tenho uma consciência mais clara disto e admiro isto em mim. É como se vivesse em clarividência permanente. Uma viagem. Eu gosto de mim muito mais agora do que sempre gostei. Sou uma pessoa íntegra, forte e que ainda vê a beleza em alguns pedaços do mundo apesar de toda a feiura reinante. Estou viva, limpa dos medos, livrando-me de segredos e quinquilharias. Quero espalhar minhas coisas por aí, desfazer-me de pesos na bagagem. Desapegar-me de objetos, utensílios e autorias. Pretendo me mudar de lugar, morar longe daqui, uma casa nova, pequena, com poucas coisas, só o essencial. Levarei meus cachorros e uns poucos metros cúbicos de pertences. Lá comprarei tudo novo, simples, pouca coisa, mas tudo novo, com cheiro de novo, sem lembranças. Não tenho mais medo do esquecimento. Vivo em abandono total, como em queda livre para os confins do inconsciente desfazendo fronteiras com a consciência do mundo. Quero lembrar do agora, com pouca agenda, pouca rotina, simples, imediata. E sobretudo, quero prestar pouca atenção na manipulação social. Acordarei de noites bem dormidas, contemplarei, criarei, dormirei e se ainda for possível, amarei, muito.